DOI 10.15517/revenf.v0i40.41951
Implicações biopsicossociais em vítimas de acidente de trânsito que cursaram com deficiência adquirida[1]
Biopsychosocial implications in traffic accident victims who course with acquired disability
Implicaciones biopsicosociales en víctimas de accidentes de tráfico que cursan con discapacidad adquirida
Fabiulla Costa Da Silva[2], Alana Libania de Souza Santos[3], Ricardo Bruno Santos Ferreira[4], Luma Costa Pereira Peixoto[5]
RESUMO
Objetivo:
compreender as implicações biopsicossociais em vítimas de acidentes de trânsito
que adquiriram deficiência. Método: Trata-se de uma pesquisa descritiva
com abordagem qualitativa, desenvolvida em um Centro de Saúde Universitário de
um município de referência do Território Sertão Produtivo da Bahia, Brasil, com
doze vítimas de acidentes de trânsito atendidas com deficiência adquirida. As
informações foram coletadas por meio de entrevista semiestruturada, no período
de agosto a setembro de 2018. Para a análise das informações, foi utilizada a
técnica de análise de conteúdo. Resultados: No aspecto físico, o
acidente de trânsito gerou restrição de autonomia, limitação física para
realização de atividades básicas da vida diária, deterioração de habilidades e
perda da independência. No aspecto psicológico, o acidente causou sofrimento
psíquico, representado por sentimentos de desesperança, tristeza, estresse,
raiva, culpa e medo, intensificados pela instabilidade econômica. Além disso, o
acidente teve grande impacto social, como restrições ao trabalho, estudo e lazer.
Conclusão: a deficiência adquirida em um acidente de trânsito tem
repercussões importantes na vida das vítimas, tanto física quanto
psicossocialmente. A formação de redes de apoio compostas por familiares e
equipe de saúde é fundamental para dar o suporte necessário às pessoas nesta
nova condição de vida.
DESCRITORES: Acidente de trânsito;
Pessoas com deficiência; Saúde mental; Reabilitação; Enfermagem.
ABSTRACT
Objective: to understand the
biopsychosocial implications in victims of traffic accidents who had acquired
disability. Method: This is a descriptive research with a qualitative
approach, developed in a University Health Center in a reference city of the
Sertão Productivo Territory of Bahia, Brazil, with twelve victims of traffic
accidents who attended with acquired disabilities. The information was
collected through a semi-structured interview, in the period between August and
September 2018. For the analysis of the information, the content analysis
technique was used. Results: In the physical aspect, the traffic
accident generated the restriction of autonomy, physical limitation to carry
out basic activities in daily life, deterioration of skills and loss of
independence. In the psychological aspect, the accident caused mental
suffering, represented by feelings of hopelessness, sadness, stress, anger,
guilt and fear, intensified by economic instability. In addition, the accident
had a great social impact, such as restrictions on work, study and leisure. Conclusion:
the disability acquired by a traffic accident has important repercussions on
the lives of the victims, both physically and psychosocially. The formation of
support networks made up of family members and the health team is essential to
provide the necessary support to people in this new condition of life
DESCRIPTORS: Traffic accident; Disabled people; Mental
health; Rehabilitation; Nursing.
RESUMEN
Objetivo: comprender las implicaciones biopsicosociales
en víctimas de accidentes de tráfico que habían adquirido discapacidad. Método: Se trata de una investigación
descriptiva con enfoque cualitativo, desarrollada en un Centro Universitario de
Salud en una ciudad de referencia del Territorio Sertão Productivo de Bahía,
Brasil, con doce personas víctimas de accidentes de tránsito que asistieron con
discapacidad adquirida. La información fue recolectada mediante entrevista
semiestructurada, en el período comprendido entre agosto y septiembre de 2018.
Para el análisis de la información se utilizó la técnica de análisis de
contenido. Resultados: En el aspecto físico, el accidente de tránsito
generó la restricción de autonomía, limitación física para realizar actividades
básicas en la vida diaria, deterioro de habilidades y pérdida de independencia.
En el aspecto psicológico, el accidente provocó sufrimiento mental,
representado por sentimientos de desesperanza, tristeza, estrés, rabia, culpa y
miedo, intensificados por la inestabilidad económica. Además, el accidente tuvo
un gran impacto social, como restricciones en el trabajo, el estudio y el ocio.
Conclusión: la discapacidad adquirida por un accidente de tráfico tiene
repercusiones importantes en la vida de las víctimas, tanto física como
psicosocialmente. La formación de redes de apoyo integradas por familiares y
equipo de salud es fundamental para brindar el apoyo necesario a las personas
en esta nueva condición de vida.
Descriptores: Accidente de tránsito;
Enfermería Personas con deficiencia; Rehabilitación; Salud mental.
INTRODUÇÃO
Os acidentes de trânsito são atualmente a
oitava causa de morte em todo o mundo e representa uma das principais causas de
óbitos entre os jovens. Ademais, são
responsáveis por sequelas capazes de provocar implicações físicas e psicossociais
nos acidentados. O relatório global revelou que, a cada ano, cerca de 1,35
milhão de pessoas morrem em acidentes de trânsito no mundo e 50 milhões de
pessoas sobrevivem com sequelas1, 2.
No Brasil, por exemplo, morreram 36.430 pessoas
vítimas de acidente de trânsito apenas em 2017. Dados do Sistema de Informações
Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) apontam que para cada óbito em
acidentes, 25 pessoas sobrevivem com lesões graves e incapacitantes3.
Além disso, segundo o Departamento Nacional de Trânsito há enorme impacto
financeiro relacionado ao elevado pagamento de indenizações, refletindo a
extensão da problemática no país4.
Os acidentes de trânsito estão entre as causas
mais comuns de deficiência adquirida, ficando atrás apenas das doenças crônicas5.
A deficiência adquirida consiste na perda da estrutura ou da função
fisiológica, psicológica ou anatômica que gera restrição para realizar
atividades da vida diária6. Nesse processo, inúmeros sentimentos são
experimentados, a depender da percepção dos acontecimentos, da resiliência, das
características de personalidade e da rede de apoio.
A partir do momento da constatação de uma
deficiência, inicia-se uma fase que provoca revolução e mudança, não apenas no
indivíduo, como também no seio familiar. Essas mudanças atingem aspectos físicos,
emocionais, socioeconômicos, espirituais e familiares. Entretanto, pouco se
discute sobre as consequências psicológicas e sociais da deficiência adquirida
por acidente de trânsito, uma vez que em sua maioria, os estudos abordam apenas
as perdas físicas e econômicas.
Assim, esse estudo justifica-se pelos índices
elevados de acidente de trânsito no Brasil e no mundo, associado ao impacto
biopsicossocial da deficiência adquirida, na vida dos vitimados. Diante disso,
surgiu a pergunta de investigação que norteia esse estudo: quais as implicações
biopsicossociais em vítimas de acidente de trânsito que cursaram com
deficiência adquirida?
Acredita-se que o poderá subsidiar a
assistência integral à pessoa vítima de acidentes de trânsito que cursa com
deficiência, a partir da identificação de fatores psicobiológicos associados a
essa experiência, além de possibilitar a reflexão de estratégias de melhor
adaptação frente à deficiência adquirida, contribuindo com ações de promoção à
saúde física e mental.
Nesse sentido, este estudo objetiva compreender
as implicações biopsicossociais em vítimas de acidente de trânsito que cursaram
com deficiência adquirida.
METODOLOGIA
Trata-se
de uma pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, desenvolvida em um Centro
de Saúde Universitário conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS), que oferece
reabilitação fisioterapêutica à população. O serviço conta também com serviços
de Psicologia, Nutrição e ambulatório de Pediatria e Clínica
Médica, situado em um município referência em assistência à saúde
no Território Sertão Produtivo da Bahia, que abarca 19 cidades, com população
estimada em 78.833 mil habitantes7.
Participaram
do estudo doze pessoas vítimas de acidentes de trânsito que cursaram com
deficiência adquirida e que são atendidas no centro universitário para
tratamento de reabilitação fisioterápica.
Considerou-se
critérios de elegibilidade dos participantes pessoas com deficiência adquirida
do tipo motora, que frequentavam o serviço regularmente, constatado pelo
comparecimento nas sessões de fisioterapia agendadas durante o período de
coleta. Por outro lado, foram excluídos os pacientes que tinham diagnóstico
psiquiátrico de Transtorno de Estresse Pós Traumático, informado pelo paciente,
para que não fosse induzido a reviver o evento traumático, cujo efeito negativo
já é conhecido; e aqueles recém-admitidos, com tempo de admissão inferior a uma
semana.
O
contato inicial com os participantes foi mediado pela coordenadora do serviço
de fisioterapia do centro universitário, que auxiliou na identificação dos
pacientes elegíveis para o estudo. Após a sessão de fisioterapia, os pacientes
foram abordados individualmente, ocasião em que foi apresentada a proposta do
estudo. Após aceite, o participante foi encaminhado para sala reservada para
leitura, assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e
realização da entrevista.
Após a assinatura do TCLE, a entrevista foi
gravada por meio de um aparelho gravador digital e posteriormente, transcrita
na íntegra, com a finalidade de manter a fidedignidade das informações. Para
preservar o anonimato, os participantes foram identificados pela letra “E”
seguida do número em ordem crescente na ordem da entrevista.
As
questões norteadoras utilizadas na entrevista desse estudo foram: 1) O que
significa para você a deficiência adquirida pelo acidente? 2) Como o acidente
interferiu na sua vida? E na sua saúde mental? (familiar, econômica, trabalho,
pessoal, social, sexualidade, lazer); 3) Atualmente você tem algum tipo de dor
e sofrimento em decorrência do acidente? Descreva-o; 4) Quais suas perspectivas
futuras?
A coleta das informações ocorreu nos meses de
agosto e setembro de 2018, por meio da técnica de entrevista semiestruturada, guiada
por um roteiro contendo questões
sóciodemográficas e outras relacionadas ao tema de investigação, com duração
média de 15 minutos. As entrevistas foram finalizadas após a constatação da
saturação das informações8.
Para análise das informações foi utilizada a
técnica de análise de conteúdo temático, constituída pelas seguintes etapas:
pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e
interpretação9.
Considerações
éticas
O
estudo respeitou os aspectos éticos propostos na Resolução nº 510 de 2016 do
Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as normas e diretrizes que
regulamentam a pesquisa científica envolvendo seres humanos, sendo aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro Universitário de Guanambi
(UniFG), agosto de 2018 com parecer consubstanciado n. 2.796.460 e CAAE: 85829917.0.0000.8068.
RESULTADOS
Participaram do estudo doze pessoas, sendo oito
homens e quatro mulheres, com idade entre 18 e 53 anos. No que diz respeito à
situação conjugal, cinco eram solteiros e sete casados. Quanto à situação
financeira, todos possuíam renda igual ou inferior a dois salários mínimos,
sendo que onze dos doze participantes eram trabalhadores autônomos. A religião
predominante foi a católica, com seis participantes.
Em relação às características do acidente de
trânsito, os entrevistados sofreram, predominantemente, acidentes utilizando a
motocicleta como meio de transporte. A deficiência física apresentada pelos
participantes abrangeu perda da mobilidade, com dependência para todas as
necessidades básicas. Entre as sequelas físicas apresentadas identificaram-se:
politrauma ósseo, traumatismo crânio encefálico e neuropraxia.
Quanto à memória do acidente, apenas um dos
entrevistados diz não se recordar do ocorrido, os outros se recordam com
exatidão o transcorrer do acidente, a data e os primeiros socorros.
Durante o processo de análise das
entrevistas
emergiram cinco
categorias:
1) limitações físicas impostas pela deficiência adquirida;
2) rede de
apoio frente a
deficiência adquirida; 3) implicações
da deficiência adquirida na
dimensão psicológica; 4) implicações
da deficiência adquirida na
dimensão social; 5) reorientação
do projeto de vida.
Limitações físicas impostas pela
deficiência adquirida
Os participantes apontaram a deficiência
adquirida como evento responsável pela restrição da autonomia e sentimento de
impotência, pois eles se veem impossibilitados de realizar atividades
rotineiras.
“Limitação, acho que a palavra é essa (risos). Fiquei dependente de
tudo, no princípio eu fiquei dependente da minha mãe pra praticamente tudo
(...) então é muito ruim você ficar ocupando outra pessoa.” (E8)
“Eu fiquei dependendo de outra pessoa no momento que eu fiquei
imobilizado, durante 30 dias. Com o braço imobilizado, tinha que ter um cuidado
maior comigo, porque eu não podia fazer várias coisas com uma mão [...] você fica
assim, impossibilitado de fazer várias coisas.” (E6)
“Eu fiquei 90 dias de cama, de cadeira de rodas, sofrendo nas mãos
dos outros. Aí eu comecei a andar [...] Está difícil para recuperar, você sente
muita dificuldade, tem que ter muita ajuda mesmo [...].” (E4)
“Foi ruim, fiquei três meses parado, dependendo dos outros [...].”
(E7)
“Eu fiquei em casa sem poder sair, precisava de ajuda de pessoas
pra fazer muitas coisas. Isso psicologicamente me afetou muito.” (E5)
Além da dificuldade de adaptação a nova
condição de vida com limitações e dependência, a dor física configura-se como
um empecilho e um motivo de preocupação para a vítima.
“[sentia] Muita dor porque eu não tinha força nas pernas. Não tinha
aquela estabilidade, então dificultou muito pra mim.” (E3)
“Tive que parar meus planos, tive que reduzir um pouco. Agora
[estou sentindo] dores também, diariamente.” (E10)
Rede
de apoio frente à deficiência adquirida
Evidenciou-se que a família, os profissionais
de saúde e a religião foram destacados como primordiais no processo de
adaptação pós-acidente. Observa-se que em volta do indivíduo com deficiência
física se desenvolve uma teia de relações denominada rede de apoio, que tem a
finalidade de auxiliar na recuperação e necessidades do acidentado.
“Minha família me apoiou bastante.” (E5)
“Meus pais que me ajudaram bastante.” (E7)
“É isso mesmo, uniu, pelo menos uniu a minha família.” (E9)
“Minha mãe e meu irmão. Meu irmão foi assim meu braço direito, foi
o que mais me ajudou.” (E8)
“Minha família me ajudou assim, questão de alimento, lavar roupa
pra mim [...]”. (E1)
“Faço dois dias de fisioterapia na semana, agora as dores vão
passando, vai acostumando mais[...]” (E10)
“Estou vendo muito resultado depois da fisioterapia.” (E3)
“Também veio uns problemas na família e abalou ainda mais. Mas
agora estou recuperando [...], estou tendo muita ajuda aqui na fisioterapia.
Gostei muito da equipe.” (E4)
“Graças a Deus minha recuperação, Deus me deu meus
movimentos de volta, graças a Deus [...].” (E12)
Implicações da
deficiência adquirida na dimensão psicológica
Verifica-se que a mudança na condição física de
forma abrupta despertou nos participantes os sentimentos de culpa, preocupação,
ansiedade, medo e tristeza. Ao serem indagados sobre a saúde psicológica, os
participantes apontaram o acidente como algo traumático.
“É bem traumático, fisicamente e psicologicamente.” (E5)
“Fiquei muito preocupada, ansiosa (...) eu passei no especialista
de joelho e ele falou que eu ia ter que fazer cirurgia. Foi onde veio mais
preocupação, não dormia, ansiosa, preocupada.” (E3)
“Fiquei
muito preocupado com as contas, entendeu? Ansioso.” (E7)
“Tem a fase do estresse, todo mundo que passa por isso tem uma hora
que fica extremamente estressada. É aquela situação de não estou aguentando
mais, já estou pra ficar doida [...]” (E8)
“Muita tristeza porque nunca mais você vai ser o que você era
antes. Tem muita dificuldade na recuperação.” (E4)
“Um choque muito grande sabe, porque até então, tudo, qualquer
coisinha assim é medo [...] coração bater mais forte, sabe.” (E10)
“Até hoje, moto pra mim (risos), eu não quero montar não [...] até
pra voltar para o serviço eu estou pensando. A gente fica assim, com um
pouquinho de trauma para andar de moto.” (E12)
“Você fica pensando no que você poderia ter feito pra evitar
aquilo, você fica se culpando, tem hora que você fica pensando numas coisas,
mas [...] tem que seguir a vida.” (E6)
Implicações
da deficiência adquirida na dimensão social
Observa-se que houve as implicações da
deficiência adquirida no âmbito social, com identificação de mudanças nos
hábitos diários dos vitimados, principalmente no que diz respeito à atividade
laboral, estudos e lazer.
“Foi
muito difícil, porque assim, eu trabalho pra mim mesma, entendeu? Então, eu vou
a domicílio, sou manicure.” (E3)
“Vai
fazer três meses agora e eu estou parado fazendo fisioterapia. Interferiu
muito, estou impossibilitado de trabalhar no momento [...]” (E6)
“Interferiu
porque eu fiquei um bom tempo parado, sem rendimento nenhum, não podia fazer
bico, por que se eu fizesse bico eu tinha que voltar para o serviço de novo. Eu
fiquei uma temporada boa, encostei no INSS [...].” (E1)
“Representa que eu fiquei parado, não posso trabalhar por enquanto,
porque no serviço, o pedreiro pega peso [...] A gente fica preocupado porque
está parado e tem que trabalhar.” ( E11)
“Tem horas que o pessoal vai cumprimentar alguma coisa e acham que
eu estou com raiva porque eu fico com a cara séria o tempo todo”. (E2) (cursou com paralisia facial)
“Eu
perdi o São João. Todas as festas eu perdi.” (E9)
“Eu não
parava em casa, porque eu passava o dia trabalhando e a noite eu tinha
faculdade. Também tem a questão da minha noiva, eu saia com ela, essas coisas.
A gente sente falta por que era quase todo final de semana, a gente ia para a
praça, a gente ia fazer alguma coisa.” (E10)
“Sinto
algumas dificuldades para me locomover, para trabalhar, não consigo mais
praticar esportes como eu fazia, então afeta nesse sentido [...] Algumas
pessoas se afastam né, mas quem realmente importa quer estar mais próximo.”
(E5)
Em consequência da impossibilidade de
trabalhar, surgiram dificuldades econômicas, que foram motivo de ansiedade e
preocupação para os entrevistados. Dessa maneira, a instabilidade financeira
teve implicações psicológicas, pois a incerteza da renda fez com que os
entrevistados ficassem em estado de apreensão.
“Minha vida econômica mudou um pouco [...]
Fiquei muito preocupado com as contas entendeu? Ansioso.” (E7)
Foi difícil porque na hora que eu quebrei, eu preocupei muito com
as dívidas (risos). Estava devendo muito, então é a primeira coisa que vem na
cabeça. Como é que eu vou fazer meu Deus? Trabalhar com a perna quebrada, você
pensa mil coisas, ai não deixa de não preocupar. Até hoje eu preocupo, porque
não tem renda nenhuma. (E4)
Reorientação
do projeto de vida
Percebe-se que o acidente trouxe consigo uma
interrupção abrupta no projeto de vida dos vitimados, com necessidade de
reorganizaçãodo modo de viver e modificação na maneira de se relacionar com
outras pessoas. Além disso, a perda e a experiência de quase morte serviram de
alicerce para a ressignificação da vida e construção de resiliência.
“Significou uma interrupção nos meus planos, na minha rotina
(pausa), nas coisas que eu fazia e na minha normalidade, porque até hoje eu não
voltei ao normal, (pausa) é isso.” (E5)
“Você fica meio abalado, você não espera acontecer um acidente de
repente, estava trabalhando, tinha projetos na vida pra você fazer alguma
coisa, aí atrapalha.” (E6)
“Veio pra refletir um pouco, primeiramente aprendi que a gente deve
agradecer, porque durante esses oito meses eu senti muita falta do pé. Passei a
entender o significado de ter, agradecer o que eu tenho, sabe!” (E10)
“Você percebe o valor da liberdade porque nessa época você fica
castrada, você fica com sua vida castrada e aí você começa a dar valor às
coisas”. (E8)
“Eu espero que eu recupere, [...] [quero] trabalhar muito. Penso em
ajudar muito as pessoas porque eu sempre gosto de ajudar. [Quero] ter uma vida
normal.” (E4)
“[Espero] melhorar a situação de vida, [...] [quero] recuperar esse
tempo que eu fiquei parado.” (E7)
“[Quero] voltar a morar só, conseguir um novo emprego numa área que
eu realmente me identifico [...], e então assim, tocar a vida.” (E8)
DISCUSSÃO
Nesse estudo, nota-se predominância de pessoas
do sexo masculino, algo também encontrado em outros estudos que avaliam o perfil
de pessoas vítimas de acidentes de trânsito, onde se verifica inúmeros fatores
culturais (machismo, relações de poder, agressividade, entre outros) que
justificam essa prevalência10,11. Evidencia-se também respaldo na
literatura acerca da prevalência na utilização de motocicletas, devido seu
baixo custo12,2.
A partir dos resultados foi possível perceber
que o impacto de lesões em acidentados no trânsito interfere na mobilidade e,
consequentemente, na capacidade de realização de atividades. É comum, nesse
aspecto, a existência de dependência na vida pessoal, profissional e social13.
Tal constatação corrobora com os achados de um
estudo realizado no Peru, onde se evidenciou que 44,7% das pessoas com algum
tipo de deficiência adquirida por acidente de trânsito dependem de alguém para
desenvolver suas atividades diárias14. Essa limitação provoca
reflexos nas dimensões biopsicossociais, uma vez que afeta as atividades
diárias básicas como mobilidade, saúde e autonomia para as atividades
cotidianas15.
Acrescenta-se ainda que as lesões oriundas dos
acidentes de trânsito comprometem a percepção do indivíduo em relação às suas
condições de vida, bem-estar psicológico, capacidade para o trabalho, e
consequentemente, a qualidade de vida15. A dependência funcional pode
provocar o aparecimento de alterações psicológicas como: tristeza, apatia,
culpa, tornando estas pessoas irritadas, intolerantes e ansiosas16.
É nesse contexto que ganha importância a
formação da rede de apoio. O apoio mais significativo advém da família nuclear,
que se ocupa dos cuidados básicos e das prerrogativas do futuro. As relações
com amigos, colegas de trabalho e profissionais de saúde também constituem
fontes significativas de apoio, que complementam o cuidado familiar. Esse
conjunto interage entre si e abarcam questões relacionadas à ajuda financeira e
apoio emocional, contribuindo tanto para o enfrentamento da vida com a
deficiência quanto no aprimoramento da atenção prestada a pessoa com
deficiência física17.
Essa evidência é semelhante ao resultado obtido
em um estudo realizado no sul do Brasil, que identificou que a rede de apoio
formada por familiares e profissionais de saúde auxilia na construção de
atitudes positivas que reforçam a estima e a confiança dos sujeitos,
acarretando assim sentimentos de conforto18.
Quanto aos profissionais, o apoio abrange não
apenas o ponto de vista técnico e instrumental, mas também no aspecto emocional
através do apoio moral e afetivo. É possível que a intervenção dos
profissionais envolvidos, juntamente com os membros que compõem a rede de
apoio, beneficiem a adaptação da pessoa que experiencia a deficiência física,
reativando seus laços sociais19-2.
Entretanto, é necessário pontuar que
aproximadamente 82,3% das pessoas com deficiência adquirida não conseguem
realizar atividade de reabilitação física com uma equipe de saúde14.
Entre os fatores que podem justificar a falta de acesso à reabilitação física
destaca-se a instabilidade financeira, fazendo com que os pacientes optem pela
subsistência da família em detrimento do investimento na sua própria
reabilitação13.
Salienta-se que, apesar da tristeza e do impacto
ocasionado pelo acidente, houve também a oportunidade de analisar a vida de
outra forma, traçando novos projetos e tendo a esperança de reaver a mobilidade
de antes da lesão.
Essa reconstrução envolve, por exemplo, o
controle do estresse e ansiedade, sintomas comuns em pacientes acidentados20.
Acrescenta-se ainda a necessidade de superação do sentimento de desesperança,
presente no transtorno de adaptação, onde o indivíduo manifesta uma resposta
emocional por conta do estresse gerado pela falta de alternativas21.
A reação aguda ao estresse é a resposta mais comum e conhecida entre
acidentados. É natural, por exemplo, que nos primeiros dias após um acidente,
não se tenha vontade de dirigir, pilotar ou andar em outro meio de transporte.
Essa reação agudizada do estresse aumenta a ansiedade e promove sintomas como
dificuldade de respirar, aumento da frequência cardíaca, agitação, perda de
apetite e insônia22.
Soma-se ainda a possibilidade de evolução para
o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), no qual a pessoa reage à
experiência com medo e impotência, revivendo persistentemente o acontecido em
sonhos e pensamentos e manifestando nervosismo, aumento na pressão arterial,
palpitações, sudorese, rubor e tremores21.
Dentre os participantes, esse estresse pode ser
potencializado porque a maioria dos entrevistados não possuía vínculo formal de
trabalho no momento do acidente. Com isso, acredita-se que a limitação na
atividade laboral tem como consequência o sentimento de impotência devido a
condição financeira desfavorável, secundária a ausência de vínculo trabalhista
no momento do acidente23.
Cabe mencionar, que através dos relatos é
possível notar que a reação frente ao acidente e a experiência que se leva
desse acontecimento é individual e por isso, varia de pessoa para pessoa. Algo
semelhante ao encontrado em outro estudo24.
As repercussões da deficiência adquirida no âmbito
da atividade laboral e nas relações sociais enfatizam a necessidade de um olhar
diferenciado no cuidado, buscando integrar a vítima na sociedade. Nesse
aspecto, o diálogo entre a equipe de saúde e o paciente permite compreender,
além dos aspectos físicos da deficiência, o modo como ele enfrenta a nova
condição nas relações pessoais e no afastamento do trabalho.
É notório que o acidente é visto como um evento
inesperado, em que as pessoas não acreditam que possam acontecer consigo ou com
pessoas próximas. A ideia prevalente, semelhante a outros achados, é que se
trata de um evento distante, o que faz com que a segurança seja colocada em
segundo plano24.
Nesse contexto, a maneira como o acidente é
abordado nas falas demonstra o grande impacto no projeto de vida dos vitimados.
A forma de tratá-lo como empecilho ao andamento de suas vidas ressalta o
sentimento de tristeza e perda. Por isso, acredita-se que muitas pessoas que
passam por esse evento precisam de uma atenção psicológica focada em ajudá-las
a dar sentido a suas vidas e buscar ressignificar a limitação física22.
Para tanto, conhecer a capacidade de
enfrentamento e resiliência dos vitimados auxiliando no desenvolvimento de
ações envolvendo educação em saúde, além de influenciar o nível de adesão ao tratamento.
Desse modo, cada fator envolvido no processo de reabilitação passa a ser alvo
de intervenção da equipe multiprofissional2.
Acredita-se assim que a reorganização do
projeto de vida e a ressignificação do trauma é fundamental para a construção
de otimismo e confiança em um desfecho positivo no tratamento e na
reabilitação, uma vez que contribui para reconquista da independência e
superação dos impactos físicos e psicológicos relacionados ao trauma.
O estudo realizado apresentou limitações quanto
ao acesso à população pesquisada, devido a inexistência de um serviço
multidisciplinar específico para vítimas de traumas. Dessa forma, houve uma
dificuldade na captação desses indivíduos.
Outra limitação importante foi o número
reduzido de estudos voltados aos aspectos psicológicos das vítimas de acidentes
de trânsitos que cursaram com deficiência adquirida. Por isso, o estudo levanta
a necessidade de desenvolvimento de novas pesquisas, em diferentes realidades
para verificar o presente objeto.
CONCLUSÃO
A deficiência adquirida por acidente de
trânsito traz repercussões significativas na vida das vítimas, tanto física
quanto psicologicamente. No aspecto físico, evidenciamos a restrição da
autonomia, limitação física para execução de atividades básicas na vida diária,
comprometimento de habilidades e perda de independência. Já no aspecto
psicológico, o acidente provocou sofrimento mental, representado pelos
sentimentos de falta de esperança, tristeza, estresse, raiva, culpa e medo.
Além disso, o acidente provoca impacto social e
financeiro para os vitimados. Por isso, a formação de redes de apoio compostas
por familiares e equipe de saúde é necessária para dar o suporte necessário aos
indivíduos nessa nova condição de vida. Ademais, é fundamental aumentar o acesso
de vítimas de acidente de trânsito aos serviços multiprofissionais que auxiliem
no cuidado de forma holística.
Acredita-se que as evidências podem contribuir com os profissionais
de saúde na busca pela compreensão dos contextos que envolvem a deficiência
adquirida. A partir disso, é possível desenvolver ações que busquem atender as
necessidades dessa população, focada não apenas na dimensão física do
indivíduo, mas também nas dimensões psicossocial e espiritual.
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[1] Data de recepção: 22 de maio de 2020 Data
de aceitação: 3 de outubro de 2020
[2] Enfermeira, graduanda em enfermagem pela Universidade do Estado da Bahia, Guanambi (BA), Brasil.
E-mail: fabiulla0608@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5713-389X
[3] Mestra em enfermagem. Professora da Universidade do Estado da Bahia (DEDC-XII). Guanambi (BA), Brasil.
E-mail: lana_libania@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6503-8742
[4] Mestre em Enfermagem. Professor da Universidade do Estado da Bahia (DEDC-XII). Guanambi (BA), Brasil.
E-mail:
ricardobrunoenf@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0614-4817
[5] Mestra em Enfermagem e Saúde. Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Feira de Santana (BA), Brasil. E-mail: lumacosta88@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6366-0212